Gênero e raça: o caso de OJ Simpson – Parte I
Por Mariane Cruz
No início de março, o canal estadunidense ESPN apresentou aos telespectadores brasileiros a série documental OJ: made in America, dirigida por Ezra Edelman e ganhadora do Oscar de Melhor Documentário em 2017. Dividido em cinco partes, o documentário reconstrói a história do grande ídolo norte-americano, desde a sua ascensão como astro do futebol americano, passando pela acusação de assassinato de sua ex-esposa, seu julgamento e seu livramento do crime. Parte crucial do documentário é desvelar a brutalidade policial e o sistema judiciário dos EUA e como esses dois temas se fundam em diferenças de raça e classe. Outros temas povoam o documentário: a violência de gênero e doméstica, a adoração às celebridades e a espetacularização dos casos policiais que chegam à mídia.
Resenha do documentário:
Nascido em 1947 na cidade de San Francisco/CA, Orenthal James Simpson – OJ Simpson, veio de uma família que tentou fugir do preconceito e da segregação do sul do país. Em 67 foi contratado pela USC – Universidade do Sul da Califórnia, como um grande astro do futebol americano universitário. Na Universidade, OJ era um dos únicos negros e se tornou uma celebridade, que seduziu e foi seduzido pela sociedade branca norte-americana. Ele rapidamente se tornou um astro do esporte nos EUA.
O documentário, ao dar início ao relato da vida de OJ, também narra as manifestações e luta do movimento negro norte-americano em busca de direitos e igualdade.
O marketing em torno do atleta OJ “escondia” sua raça/cor, diferenciava-o de sua própria identidade. Perguntado sobre a posição de atletas negros no movimentos dos direitos civis, OJ respondeu que não era negro, era OJ. Ele dizia que não se interessava sobre o assunto, sobre a questão racial no país. Em 1968, enquanto OJ se tornava cada vez mais famoso, ganhava prêmios e era adorado pelo mundo dos esportes, Martin Luther King foi assassinado e o movimento negro ganhava força em meio às repressões políticas e sociais.
Ao se aposentar dos campos em 1979, OJ se mudou para Brentwood em Los Angeles/CA, bairro predominado por uma elite branca, amiga da polícia local. Nesse período, OJ namorava mulheres brancas e aparecia em séries, shows e filmes na TV. Ele se silenciou no que diz respeito à comunidade negra, aos direitos civis, à brutalidade da polícia, enquanto a Operação Hammer (martelo) instituída pelo departamento de polícia da cidade massacrava a comunidade negra.
Mesmo com leis segregacionistas, Los Angeles era considerada uma boa cidade para se viver, sendo que a população negra na cidade havia aumentado 600% entre os anos 1940 e 60. LA era considerada uma cidade progressista, mas ainda tinha estruturas e instituições segregadoras e racistas, como a Polícia, que foi acusada de dar tratamentos diferenciados para negros e brancos. Em agosto de 1965 houve uma grande revolta e manifestação sobre os direitos civis das pessoas negras e que foi brutalmente reprimida pela polícia.
OJ era um homem de negócios, amigo de grandes empresários e políticos. Ele aumentou a fortuna que conquistou com o esporte participando de grandes peças publicitárias e acrescentando propriedades e empresas ao seu patrimônio pessoal.
Casado com Nicole Brown desde o início da década de 1980, a violência doméstica fazia parte de sua vida conjugal. Por diversas vezes Nicole registrou queixas e as agressões e abusos (por meio de relatos escritos e fotografias), mas a polícia apenas conversava com OJ sem tomar providências. A situação de violência permanecia. Em 1989 a polícia foi chamada mais uma vez na casa da família Simpson porque OJ agredia sua esposa, Nicole. Ao ser questionado, ele fugiu com o carro e pediu ajuda a seus amigos policiais, que o livraram da acusação. No mesmo ano, a polícia de Los Angeles foi acusada (e filmada) de cometer o espancamento público de Rodney King, homem negro, e se defendeu dizendo que foi um mero erro humano. Os policiais envolvidos no espancamento foram inocentados.
O documentário mostra como o sistema judiciário também se mostrou racista, absolvendo criminosos que cometeram infrações legitimamente racistas. No caso de OJ, ao contrário, a mídia o tratou como bom e decente pai de família, e a esposa era a louca, a descontrolada. Nicole reconhecia que não se divorciava do marido por causa dos filhos, e da vida financeira que levava. Ele a controlava emocionalmente e patrimonialmente. Ele foi acusado formalmente de agressão contra Nicole e sentenciado a serviços comunitários, que cumpriu organizando um torneio de golf entre celebridades. Apenas em 1993 eles se divorciaram.
Em 13 de junho de 1994, Nicole e um amigo da família (Ron Goldman) foram encontrados assassinados em sua casa. Na cena brutal foram encontradas duas luvas, no carro de OJ foi encontrado sangue e ele tinha machucado a mão. Na ocasião o atleta foi ouvido, mas liberado. Quando, depois da investigação policial, houve o mandado de prisão, OJ realizou uma tentativa de fuga e foi perseguido numa autoestrada, atuação que foi assistida por 90 milhões de pessoas. Entretanto, diferentemente das perseguições comumente praticadas pela polícia de LA, OJ não foi interceptado, mas sim escoltado até sua casa. Com isso, o povo iniciou uma campanha por OJ: Free OJ (Liberdade para OJ).
Já no julgamento, a sua defesa foi composta por grandes advogados criminalistas do país e por John Cochrane, um advogado negro de direitos civis, conhecido pela atuação em causas que envolviam raça. A questão racial foi trazida para o julgamento.
Um conjunto de evidências foi apresentado ao júri pela acusação: Nicole havia juntado ao longo dos anos, cartas, fotos e relatos dos maus-tratos e agressões cometidos por OJ. Soma-se que a polícia tenha ido à casa da família em mais de 12 vezes, sendo que em algumas OJ dissuadiu a polícia a não dar andamento ao caso e em outras foi Nicole que não apresentou queixa.
O julgamento foi televisionado pela CNN em seus mais de oito meses de duração.
A polícia racista e os procedimentos de recolhimento de provas foram desacreditados e desqualificados pela defesa, que custou U$50.000,00 por dia de julgamento. Com um processo essencialmente oral, foram colhidos mais de 100 depoimentos contidos em 45.000 páginas de transcrição. Ao fim, o júri, composto por uma maioria de mulheres negras, chegou ao veredito em uma única manhã, em 3:30 horas de deliberação – esperava-se que fossem dias.
OJ foi considerado inocente e absolvido das acusações de assassinato. Alguns membros do júri indicaram que a absolvição de OJ teria sido uma vingança contra polícia de LA, pela também absolvição dos policial que espancaram Rodney King, o taxista espancando pela polícia. Os americanos comemoraram: Now you know how it feels (Agora vocês sabem como nos sentimos), em referência à absolvição dos policiais e inércia do Estado em tratar a questão racial.
Depois do julgamento, OJ foi, ao mesmo tempo, idolatrado e escrachado pela população. No entanto, continuava a ser uma celebridade que sabia ganhar dinheiro. OJ conseguiu a guarda dos filhos que teve com Nicole, que estavam com a família dela.
Um ano depois da absolvição, as famílias das vítimas ajuizaram ação civil contra OJ. Ele depôs e pôde ser interrogado, diferentemente do processo criminal, em que não prestou depoimento. Nesse caso, o júri o condenou, ou melhor, afirmou que ele poderia ser responsabilizado pelos assassinatos. Foi condenado em 33 milhões de dólares por danos causados (punitive damages).
Livre, em 2007 OJ foi condenado a 33 anos de prisão por assalto e tentativa de sequestro. A pena não foi considerada uma coincidência.