Descriminalização do porte de maconha: o que muda com o julgamento do RE 635.659 pelo Supremo (e indicação de leitura)

Por Júlia Leite Valente   Está em curso no Supremo Tribunal Federal o julgamento do Recurso Extraordiário 635.659 que questiona a constitucionalidade do artigo 28 da Lei Federal 11.343 (Lei de Drogas). O recurso, promovido pela Defensoria Pública de São Paulo, está ligado ao caso de Francisco Benedito De Souza, preso do CDP de Diadema, […]

Por Júlia Leite Valente

 

Está em curso no Supremo Tribunal Federal o julgamento do Recurso Extraordiário 635.659 que questiona a constitucionalidade do artigo 28 da Lei Federal 11.343 (Lei de Drogas). O recurso, promovido pela Defensoria Pública de São Paulo, está ligado ao caso de Francisco Benedito De Souza, preso do CDP de Diadema, que foi encontrado na cela com 3g de maconha e condenado a dois meses de prestação de serviços à comunidade. Os ministros do STF estão decidindo se o porte de maconha para consumo pessoal é crime ou não, analisando se o artigo 28 da Lei 11.343 (que torna crime o porte de drogas para consumo pessoal) viola ou não direitos fundamentais estabelecidos na Constituição. O artigo da Lei de Drogas dispõe:

Art. 28.  Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I – advertência sobre os efeitos das drogas;

II – prestação de serviços à comunidade;

III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

§1o Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.

A recorrente defende que a criminalização da posse de drogas para consumo pessoal viola o art. 5º, X, da Constituição Federal, que prevê a inviolabilidade da intimidade e da vida privada das pessoas. A Constituição, portanto, protege as escolhas dos indivíduos no âmbito privado, desde que não ofensivas a terceiros. Além disso, o Direito Penal requer que para que uma conduta seja criminalizada, ela deva lesionar bem jurídico alheio. Neste sentido, a Defensoria Pública alega a falta de lesividade das condutas descritas no artigo.

O Ministério Público defende, ao contrário do que alega a recorrente, que o bem jurídico tutelado pelo dispositivo em análise é a saúde pública, partindo de uma concepção em que a conduta daquele que traz consigo droga para uso próprio contribui, por si só, para a propagação do vício no meio social.

Lembrou o Relator, Ministro Gilmar Mendes, que não é a primeira vez que o art. 28 é trazido a julgamento pelo Plenário do STF. Por não constar entre as sanções previstas no artigo pena privativa de liberdade, indagou-se no julgamento do Recurso Extraordinário 430.105 se teria havido extinção da punibilidade do fato. Concluiu-se, naquela ocasião, que a não previsão de pena privativa de liberdade não desfigura a natureza penal das condutas ali tipificadas, conforme ementa a seguir transcrita:

Posse de droga para consumo pessoal: (art. 28 da L. 11.343/06 – nova lei de drogas): natureza jurídica de crime. 1. O art. 1º da LICP – que se limita a estabelecer um critério que permite distinguir quando se está diante de um crime ou de uma contravenção – não obsta a que lei ordinária superveniente adote outros critérios gerais de distinção, ou estabeleça para determinado crime – como o fez o art. 28 da L. 11.343/06 – pena diversa da privação ou restrição da liberdade, a qual constitui somente uma das opções constitucionais passíveis de adoção pela lei incriminadora (CF/88, art. 5º, XLVI e XLVII). 2. Não se pode, na interpretação da L. 11.343/06, partir de um pressuposto desapreço do legislador pelo “rigor técnico”, que o teria levado inadvertidamente a incluir as infrações relativas ao usuário de drogas em um capítulo denominado “Dos Crimes e das Penas”, só a ele referentes. (L. 11.343/06, Título III, Capítulo III, arts. 27/30). 3. Ao uso da expressão “reincidência”, também não se pode emprestar um sentido “popular”, especialmente porque, em linha de princípio, somente disposição expressa em contrário na L. 11.343/06 afastaria a regra geral do C. Penal (C.Penal, art. 12). 4. Soma-se a tudo a previsão, como regra geral, ao processo de infrações atribuídas ao usuário de drogas, do rito estabelecido para os crimes de menor potencial ofensivo, possibilitando até mesmo a proposta de aplicação imediata da pena de que trata o art. 76 da L. 9.099/95 (art. 48, §§ 1º e 5º), bem como a disciplina da prescrição segundo as regras do art. 107 e seguintes do C. Penal (L. 11.343, art. 30). 6. Ocorrência, pois, de “despenalização”, entendida como exclusão, para o tipo, das penas privativas de liberdade. 7. Questão de ordem resolvida no sentido de que a L. 11.343/06 não implicou abolitio criminis (C.Penal, art. 107). II. Prescrição: consumação, à vista do art. 30 da L. 11.343/06, pelo decurso de mais de 2 anos dos fatos, sem qualquer causa interruptiva. III. Recurso extraordinário julgado prejudicado. (RE 430105 QO/RJ, Relator Min. Sepúlveda Pertence, julgado em 13.2.2007, Primeira Turma, DJ 27.4.2007)

O presente julgamento caminha em direção à descriminalização do porte de maconha para uso pessoal. O ministro Gilmar Mendes votou pela inconstitucionalidade da criminalização do porte de todas as drogas para uso pessoal. Os ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso restringiram seus votos ao caso concreto e votaram pela descriminalização apenas do porte de maconha para uso pessoal. O julgamento foi interrompido por um pedido de vista do ministro Teori Zavascki, estando adiado por tempo indeterminado.

Restringir o julgamento de inconstitucionalidade à maconha opera uma discriminação na descriminalização, pois deixa de fora, sem razão, usuários de outras drogas, sendo que os argumentos utilizados para a descriminalização poderiam ser aplicados às drogas em geral. Foi de Gilmar Mendes a ponderação de que a descriminalização exclusiva da maconha poderia agravar o estigma de outros usuários – sendo os usuários de outras drogas como o crack os mais estigmatizados.  De fato, o art. 28, analisado no julgamento, não faz distinção entre as espécies de droga e restringir a descriminalização à maconha fere o princípio da isonomia. O ministro Gilmar Mendes afirmou que o tipo penal previsto no art. 28 da Lei n. 11.343/06 viola não só direito à privacidade e à intimidade, mas também os princípios da proporcionalidade, da ofensividade e da lesividade, não protegendo, na prática, os bens jurídicos declarados como tutelados, quais sejam, a saúde e a segurança públicas.

Para Fachin, caberia ao Congresso Nacional estabelecer quantidades mínimas que sirvam de parâmetro para diferenciar usuário e traficante. Enquanto isso, parâmetros provisórios poderiam ser estabelecidos pelos órgãos do Poder Executivo – Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas (SENAD) e Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP).

Já Barroso foi além e sugeriu a quantidade de drogas cujo porte distinguiria o usuário do traficante (25 gramas) e estendeu a declaração de inconstitucionalidade à produção de maconha para consumo pessoal, limitado a seis plantas fêmeas, nos moldes do Uruguai, país que em 2013 legalizou a produção e venda da droga.

No Brasil não há previsão de pena privativa de liberdade para o crime de porte de drogas para consumo pessoal. No entanto, não existe um critério objetivo para determinar a quantidade de droga que diferencia um usuário de um traficante, fazendo com que a criminalização por tráfico recaia sempre sobre os mais vulneráveis, dada a seletividade inerente ao poder punitivo.

O julgamento do RE 635.659 possui repercussão geral reconhecida, ou seja, valerá para os casos semelhantes. Na prática, ninguém poderá ser preso ou condenado por portar maconha para uso pessoal. Se a maioria dos ministros votar a favor da inconstitucionalidade, divergindo entre a descriminalização de todas as drogas ou apenas da maconha, o Tribunal deverá chegar a um acordo sobre o tema. O STF poderá, ainda, criar o parâmetro para diferenciar o usuário do traficante.

Em um país como o Brasil, que possui a quarta maior população carcerária do mundo – mais de 600 mil presos para quase metade das vagas – dos quais 27% foram presos por tráfico (entre as mulheres a porcentagem é 63%), segundo dados do Ministério da Justiça, o julgamento possui um efeito simbólico importante, pois provoca o tão urgente debate sobre a política de drogas vigente, podendo representar um relevante primeiro passo em direção ao fim da “guerra às drogas”, muito mais letal do que as drogas em si.

Sobre o tema, indica-se o livro do neurocientista estadunidense Carl Hart, Um preço muito alto, publicado em 2014 pela Zahar. Negro e oriundo de família pobre do gueto de Miami, o cientista narra sua trajetória pessoal com os acasos que fizeram com que saísse de uma juventude sem perspectivas e próxima ao crime a uma carreira de sucesso estudando os efeitos de substâncias como cocaína e crack nos seres humanos. Hart desconstrói diversos preconceitos sobre o vício e revela facetas do fracasso dessa guerra. Leitura imperdível para qualificar o debate.

Uma das coisas que pretendo aqui é examinar de modo crítico a visão que temos das drogas e de seus usuários; o papel que a política racial tem desempenhado nessa percepção; e de que maneira isso levou a táticas de combate às drogas que se revelaram particularmente contraproducentes nas comunidades pobres. Quero examinar a maneira como atribuímos causas aos atos das pessoas e deixamos de reconhecer a complexidade das influências que nos conduzem pelos caminhos que tomamos na vida. Busco explorar os dados de pesquisas em geral usados para apoiar argumentos sobre drogas, vício e racismo, revelando o que eles podem e não podem nos dizer sobre essas questões. Analisando como esses problemas afetaram minha própria vida, espero ajudar o leitor a entender de que maneira certas ideias equivocadas atrapalham as tentativas de melhorar a educação e as políticas relacionadas às drogas. (HART, 2014, p. 23)

 

 

 

Júlia Leite Valente - Advogada Sênior e Sócia Fundadora

Júlia Leite Valente

Advogada sênior sócia fundadora

É mestra em Direito Penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e bacharela em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com formação complementar pela Université de Lille, na França. É autora do livro UPPs: Governo Militarizado e a Ideia de Pacificação.