Direito à Educação: A Lei de Cotas a partir dos princípios da isonomia, da razoabilidade e da proporcionalidade
Por Gustavo Pessali Marques
Recentemente chegou ao VRP Advocacia um caso em que um rapaz havia estudado por praticamente toda sua vida em escolas públicas, tendo, no entanto, concluído o último ano do ensino médio em um EJA (Educação de Jovens e Adultos) próximo de sua casa. Ocorre que tal curso era ofertado por instituição filantrópica associada a um colégio particular, o que teria desenquadrado referido aluno na possibilidade de concorrer às vagas garantidas aos estudantes negros ou pardos que tenham estudado toda sua vida na rede pública de ensino.
Visando à garantia dos interesses de nosso cliente, ajuizamos em regime de urgência ação ordinária em face da União Federal, com pedido de antecipação de tutela para que fosse determinada à ré a inclusão imediata do Autor no programa de cotas estabelecido nos artigos 1° e 3° da Lei n” 12.711/2012 (Lei de Cotas).
Para tanto, esclarecemos que apesar de ter estudado por mais de 10 anos em escola pública, ser pardo e economicamente hipossuficiente, nosso cliente não logrou êxito em ser contemplado pela política de cotas estabelecida pela Lei 12.711/2012, pelo fato de ter concluído o último ano do ensino médio em colégio supletivo filantrópico gratuito na modalidade Educação de Jovens Adultos – EJA, vinculado à escola privada.
Salientamos que no momento da inscrição para o ENEM nosso cliente surpreendeu-se ao não encontrar o nome do EJA em que havia concluído os estudos na lista dos colégios públicos, mas sim dos particulares, o que lhe privou do direito de pleitear a vaga no ensino superior pelo sistema de cotas.
Importante lembrar que na referida instituição a matrícula se dava a partir de análise sócio-econômica dos candidatos, sendo aprovados somente aqueles considerados economicamente hipossuficientes e que, pelas características da escola, não se evidenciava o seu caráter privado, vez que o perfil dos seus alunos não era condizente com o setor educacional privado, mas sim com o público. Além disso, demonstramos que o Colégio que oferece a Educação de Jovens e Adultos tem natureza e estrutura completamente separadas daquele e que estudar em tal EJA não corresponde a ser bolsista em escola privada, já que se tratam de instituições diferentes.
Foi necessário fundamentar a petição no direito à educação, bem como na ratio iuris da Lei de Cotas. O direito à educação está contemplado no art. 6º de nossa Constituição, sendo direito social. O art. 22, XXIV garante à União o dever de legislar privativamente acerca das diretrizes de base da educação nacional. O Art. 205, por sua vez, determina que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família e será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
As cotas, por sua vez, surgiram dentro do desenvolvimento das diretrizes de base de nossa educação, e em nosso país se desenvolveram a partir das políticas públicas de ações afirmativas visando a redução das desigualdades raciais. Guiam-se pela ideia de reparação social e histórica, ou justiça compensatória. Também servem para promover a ascensão social dos negros e afrodescendentes, por conta da ausência de políticas inclusivas ao longo da história de nosso país. Sendo assim, frisamos que a ideia apregoada pelas cotas se coaduna aos interesses sociais do Estado, em busca da redução da desigualdades, e na intenção de promover as classes menos favorecidas ou fragilizadas, seja pelo critério étnico seja pelo critério social de condição financeira e origem escolar.
Este, portanto, é o conteúdo intrínseco às leis que estabeleceram as cotas para acesso à universidade em nosso país, a ratio iuris buscada pelo legislador e que deve ser levada em conta na determinação dos beneficiários de tal direito. O grande desafio, no entanto, era aplicar uma interpretação mais harmônica com tais objetivos, já que a lei de cotas é extremamente rígida em sua redação:
A lei 12.711/12, lei de cotas, estabelece em seu art. 1º que:
“As instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas”.
Esta lei determina ainda em seu art. 3º que:
Art. 3o Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1o desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção no mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Reconhecido o fundamento da lei de cotas, foi necessário entender o motivo pelo qual os estudantes que cursaram parte de sua educação em escolas privadas não teriam acesso a tal direito. A jurisprudência do egrégio Tribunal Regional Federal da Primeira Região foi muito esclarecedora nesse sentido:
ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. ENSINO SUPERIOR. UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ. SISTEMA DE COTAS. ALUNO QUE CURSOU PARTE DO ENSINO FUNDAMENTAL EM ESCOLA PRIVADA, COMO BOLSISTA. INEXISTÊNCIA DO DIREITO AO INGRESSO PELO ALUDIDO SISTEMA. SEGURANÇA CONCEDIDA. SITUAÇÃO DE FATO CONSOLIDADA. 1. Consoante orientação jurisprudencial deste Tribunal, “a reserva de vagas de ensino superior em favor de candidatos oriundos de escolas públicas tem como objetivo a mitigação da desigualdade de ensino em desfavor de alunos que, devido a suas condições econômicas, não puderam custear escola na rede particular. A triste premissa do sistema de cotas é a de que a rede pública de ensino fundamental e médio apresenta, em regra, nível de ensino mais fraco e, portanto, os alunos dela oriundos não têm condições de competir em igualdade com os provenientes da rede particular” (EDAC 0008893-71.2009.4.01.3803/MG). (AMS 0001310-89.2009.4.01.4000 / PI, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL DANIEL PAES RIBEIRO, SEXTA TURMA, e-DJF1 p.339 de 01/08/2014)
Desta forma, evidenciamos que as cotas visam garantir ao estudante de escolas públicas a possibilidade de ter acesso às universidades em igualdade de condições com alunos provenientes de escolas privadas, cujo nível educacional é, via de regra, mais elevado. Diante desta premissa, salientamos que o Autor cursou o último ano de seus estudos em um Educação de Jovens e Adultos, curso supletivo de um projeto filantrópico associado a uma escola privada de seu bairro cuja estrutura, facilidade e oportunidade garantidas aos alunos deixam muito a desejar quando comparadas à maior parte das escolas privadas.
A partir disso, conseguimos comprovar que o Autor não foi beneficiado de forma alguma por ter concluído seu ensino médio em tal escola, tendo sido, na verdade, prejudicado pelo fato de não ter podido beneficiar-se do sistema de cotas, mesmo tendo estudado mais de 10 anos em escola pública e sendo pardo. Com isso, afirmamos ser imperioso concluir que, para a aplicação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade em consonância com a ratio iuris atrelada à criação da política de cotas raciais, levando em consideração ainda a situação específica do Autor, ele tem direito a ser beneficiário da política de cotas e imediatamente incluído no processo seletivo por meio deste sistema.
O Juiz responsável pelo julgamento do caso, em menos de 24 horas, concedeu a liminar, assegurando ao cliente sua inclusão no sistema de cotas. Da leitura da decisão, percebe-se que de acordo com a documentação que instruiu os autos, o autor sempre estudou em escola pública, tendo cursado tão somente a parte final do ensino médio no EJA, instituição de natureza privada. Desse modo, para o Juiz, caso se atendesse rigorosamente ao disposto na lei, o Autor estaria excluído do sistema de cotas a que pretendia concorrer.
Em aprofundamento da questão, no entanto, o Juiz afirmou que, não obstante, a exegese meramente literal da normalização não pode prevalecer diante da interpretação sistemática, segundo a qual, na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige. Nesse sentido, acrescentou que o sistema de cotas para os egressos de escolas públicas se insere nas políticas de ações afirmativas, que visam a dar efetividade à norma constitucional que reza serem objetivos da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária, assim como reduzir as desigualdades sociais. Têm, pois, as ações afirmativas, fundamento constitucional.
Para ele, um dos objetivos do referido sistema seria justamente propiciar ao aluno integrante de uma minoria excluída, aí inserido aquele economicamente hipossuficente, a possibilidade de acesso ao ensino superior. Buscou-se, desse modo, compensar aqueles que não tiveram acesso a escolas privadas, as quais, supostamente, oferecem aos seus alunos melhores condições de competitividade no vestibular.
Por fim, determinou afigurar-se ilegítima e despida de razoabilidade a negativa em incluir o autor no programa/sistema de cotas sociais estabelecido nos artigos 1° e 3° da Lei n” 12.711/2012 para disputa de uma vaga no Ensino Superior Público, deferindo em sua integralidade os pedidos feitos pelo VRP Advocacia em benefício de nosso cliente.