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Golpe contra Constituição: decisão do STF fere o princípio da presunção de inocência

Por Júlia Valente

Dia 5 de outubro de 2016, a Constituição “Cidadã” fez 28 anos, mas também sofreu um dos mais duros golpes por parte daqueles que deveriam ser seus guardiões, os ministros do Supremo Tribunal Federal.

No julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) n. 43 e 44, propostas pelo Partido Ecológico Nacional e pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, o STF reafirmou o entendimento de fevereiro desde ano quando a Corte permitiu o cumprimento da pena a partir de decisão da segunda instância – e não do trânsito em julgado da sentença penal condenatória (ou seja, quando não mais se pode recorrer), o que afronta o princípio constitucional basilar do Processo Penal de presunção de inocência, previsto no art. 5º, inciso LVII da Constituição Federal:

“Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”

Em fevereiro, a decisão foi proferida no julgamento de um Habeas Corpus (HC 126.292) para um caso específico, em que o plenário adotou o entendimento por 7 votos a 4. Gerou-se então uma grande controvérsia jurisprudencial, uma vez que, mesmo que a decisão não tivesse força vinculante, tribunais de todo o país passaram a adotar o posicionamento, ignorando o disposto no art. 283 do Código de Processo Penal (CPP):

“Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.”

As ADCs de agora discutem o referido artigo do CPP e a decisão de ontem (que ainda não é de mérito) passa a valer para todos e terá graves impactos na população carcerária brasileira, que já é a quarta maior do mundo em números absolutos, atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia, com mais de 622 mil presos – se consideradas as prisões domiciliares, o Brasil ultrapassa a Rússia. 

O julgamento das ADCs começou em setembro, quando o Ministro Marco Aurélio, relator do processo, havia decidido pela execução da pena após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Entretanto o Ministro Edson Fachin abriu a divergência, sendo acompanhado por Roberto Barroso, Teori Zavascki, Luiz Fux, Gilmar Mendes e Carmem Lúcia, defendendo interpretações contrárias à letra da constituição e adotando argumentos de senso comum. O Ministro Dias Tóffoli mudou o entendimento anteriormente adotado e o placar terminou em 6×5.

A decisão representa um retrocesso no âmbito dos direitos e garantias fundamentais. Como bem apontado pelo Ministro Celso de Mello no julgamento em fevereiro, cerca de 25% dos réus têm suas condenações revertidas nos tribunais superiores – a decisão do STF permite que os acusados que podem vir a ser absolvidos no STJ ou STF sejam tratados como culpados. Como o Ministro bem afirmou, “que se reforme o sistema processual, que se confira mais racionalidade ao modelo recursal, mas sem golpear um dos direitos fundamentais a que fazem jus os cidadãos de uma república”.

Júlia Leite Valente - Advogada Sênior e Sócia Fundadora

Júlia Leite Valente

Advogada sênior sócia fundadora

É mestra em Direito Penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e bacharela em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com formação complementar pela Université de Lille, na França. É autora do livro UPPs: Governo Militarizado e a Ideia de Pacificação.