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O fim da natureza hedionda do tráfico privilegiado

O fim da natureza hedionda do tráfico privilegiado

Mariane Cruz

No último dia 23, o Supremo Tribunal Federal decidiu que o tráfico privilegiado, previsto no artigo 33, parágrafo 4º, da Lei de Drogas (Lei nº 11.343 de 2006), não pode mais ser considerado crime hediondo. Assim ele é tipificado:

Art. 33.  Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

§ 4º  Nos delitos definidos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.   

De acordo com a Lei nº 8.072 de 1990, crime hediondo é aquele que não é passível de fiança, graça, indulto e anistia. O apenado começa a cumprir sua pena em regime fechado e tem a possibilidade de progredir de regime após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente. Os crimes de natureza hedionda são os considerados mais graves, mais violentos e que merecem uma punição mais severa, como o estupro e a tortura.

Até a decisão do STF, o tráfico privilegiado tinha tratamento de hediondo, ou seja, mesmo os réus primários, com bons antecedentes e não integrantes de organizações criminosas que fossem condenados por tráfico sofriam as punições do crime hediondo. Desde junho de 2015, o Supremo julgava o HC 118533, impetrado pela Defensoria da União (MS) e que alegava que réus primários não poderiam ter o mesmo tratamento de reincidentes e integrantes de quadrilhas.

A população carcerária brasileira é quarta maior do mundo e ultrapassa 600 mil presos. E boa parte está encarcerada pela Lei de Drogas. Desses, quase metade foi condenada por tráfico privilegiado. Além do imenso número de presos que possui a condenação por tráfico privilegiado no país, o viés de gênero também foi considerado na decisão, visto que quase 80% desses presos são mulheres. De acordo com o Ministro Lewandowski

Reconhecer, pois, que essas pessoas podem receber um tratamento mais condizente com a sua situação especial e diferenciada que as levou ao crime, configura não apenas uma medida de justiça (a qual, seguramente, trará decisivo impacto ao já saturado sistema prisional brasileiro), mas desvenda também uma solução que melhor se amolda ao princípio constitucional da “individualização da pena”, sobretudo como um importante instrumento de reinserção, na comunidade, de pessoas que dela se afastaram, na maior parte dos casos, compelidas pelas circunstâncias sociais desfavoráveis em que se debatiam.

Os votos que concederam o habeas corpus também levaram em conta que o tratamento de crime hediondo dispensado a todos os tipos penais do art. 33 feria o princípio da individualização da pena, o qual garante que os indivíduos não sejam submetidos às mesmas penas, mesmo que tenham cometido o mesmo crime, em razão de sua situação social e histórica.

A punição pelo art. 33, § 4º da Lei nº 11.343 é excessivamente rigorosa com sujeitos que, por vezes, envolveram-se na prática de crime de maneira esporádica, não sendo criminosos habituais, pois os condena ao regime fechado e dificulta a sua progressão, lotando as penitenciárias brasileiras. Dessa forma, Por isso, tal decisão se mostrou preocupada com a justiça social e com a reforma penal e penitenciária pela qual deve passar nosso sistema punitivo.

Referências:

http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=319638

http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2016-06/supremo-decide-que-trafico-privilegiado-de-drogas-nao-e-hediondo

Mariane Reis Cruz - Advogada Sênior e Sócia Fundadora

Mariane Reis Cruz

Advogada sênior sócia fundadora

É mestra e bacharela em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com formação complementar em Direito e Políticas Públicas pela Université de Lille, na França, e Humanidades pela Universidad de la República, no Uruguai. É também bacharela em Letras pela UFMG.