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A realidade carcerária no Brasil – continuação

No final de julho, uma rebelião num presídio no interior do Pará deixou 57 detentos mortos. Infelizmente essa é uma realidade comum no Brasil, onde de tempos em tempos temos notícia de motins, rebeliões e mortes nos presídios. Uma tragédia anunciada. A realidade carcerária no país é assustadora, os presídios brasileiros estão superlotados, falta trabalho para os presos, falta estrutura (pessoal e física) e as facções criminosas tomam conta das penitenciárias. Tudo isso é fermento para a ebulição do sistema penal brasileiro.

O Brasil sustenta imensa população carcerária, passando de 700 mil pessoas, sendo que mais de um terço desse número é de presos provisórios, ou seja, ainda não foram condenados ou absolvidos. Nesse sentido, Minas Gerais é o estado é mais crítico que a média brasileira, 40% dos presos são provisórios e quase 19.000 estão encarcerados há mais de 180 dias sem julgamento. Já falamos desse desastre social aqui.

Em depoimento na Comissão de Constituição e Justiça do Senado no último dia 06, o Juiz de Direito da Vara de Execução Penal em Manaus, Luis Carlos Valois, explicou como é a realidade brasileira do sistema carcerário:

“Eu sou do Amazonas. Quando ocorreu a rebelião em que morreram 64 presos, em janeiro de 2017, eu estava em casa. Um delegado da Polícia Federal me chamou para ajudar no fim da rebelião. Os corpos todos estavam amontoados, jogados na frente da penitenciária. A princípio, eu nem estava atendendo o telefone, porque eu estava de recesso, não estava trabalhando, não estava de plantão. Cheguei lá, e vi aquele caos todo. A polícia não sabia o que fazer, e eu percebi o que acontece com a segurança pública com relação ao sistema penitenciário. É justamente isto: é sempre um experimento, é sempre gente aprendendo; não existe um conhecimento concreto sobre o que acontece no sistema penitenciário. A gente fica falando do sistema penitenciário, fica falando de preso, mas ninguém cria um conhecimento, um estudo em que se ouvem aquelas pessoas e se dialoga com elas que estão lá primeiro. Então, estava todo mundo perdido. Por que perdido? Porque o Secretário mesmo, delegado da Polícia Federal há anos, a primeira vez em que ele estava lidando com o sistema penitenciário era aquela. Isso já foi falado aqui, sobre a Polícia Federal, a Justiça Federal lidar com o sistema penitenciário, com que não está acostumada, mas era o Secretário de Segurança, na época, esse delegado da Polícia Federal. E aqueles corpos, para ele e para todo mundo, não eram nada, mas eu, que sou juiz há 20 anos, conhecia a cabeça que estava jogada no chão, eu conhecia as pessoas de quem não dava nem para saber a cor porque estavam carbonizadas, e aquilo me fez perceber o porquê… Isso é um indicativo de o quanto os Srs. Senadores devem analisar as leis pela perspectiva de quem traz essa lei para ser avaliada. Nós temos, na história, um Legislativo fazendo leis, criando penas, aumentando penas, temos o Judiciário dizendo que isso não é problema dele, “meu problema é encarcerar, isso é problema do Executivo, que tem que construir penitenciária”. O Legislativo diz: “Isso não é problema meu, eu não tenho que conseguir penitenciária, eu só tenho que fazer lei”. E o Executivo diz que tem que construir penitenciária, mas ele não tem culpa, porque quem está fazendo a lei é o Legislativo, que está mandando prender. Só que a gente chegou a um cúmulo de um agente do Executivo fazer uma lei para prender, quer dizer, ele, que era para cuidar da penitenciária, está fazendo lei para prender. Não há nada sobre sistema penitenciário nessa lei, mas… Nada melhora o sistema penitenciário, é só para encarcerar. E há uma coisa que é preciso ser vista, porque a gente está numa Comissão de Constituição e Justiça: a prisão no Brasil já não cumpre a lei de qualquer forma. Qualquer Lei de Execução Penal que você pegar, de qualquer editora, vai ter uma página, vai ter um artigo de todas as páginas que não é cumprido. Nós temos uma lei na realidade, uma prisão na realidade e uma prisão na lei totalmente diferentes. No Brasil, toda prisão é ilegal. Quer dizer, só para começar a discutir lei que encarcera, a gente tinha que, primeiro, discutir a prisão: a prisão cumpre a lei? A prisão não cumpre a lei no Brasil, não cumpre a Constituição, não cumpre nada”.

O que traz luz para esse problema é a recente decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que afirma que “quando uma pessoa é presa de forma preventiva e depois, absolvida, deve ser indenizada pelo Estado por ter ficado impossibilitado de trabalhar”. O acórdão se funda no princípio da isonomia para exigir reparação:

“Por outro lado, para a responsabilidade civil do Estado não se exige a ilicitude de sua conduta. Portanto, a conduta lícita causadora de dano também enseja o dever reparatório ou indenizatório. Para a responsabilidade civil do Estado bastam a conduta (ainda que licita), o dano e o nexo de causalidade entre uma e outra. O Brasil tem cerca de 700.000 presos. Em torno de 40% são presos provisórios, decorrentes de prisões temporárias para investigação e preventivas para garantia do processo. Metade dos presos provisórios acabam absolvidos. Não há que se perquirir de ilicitude na prisão provisória. Mas, igualmente não se pode admitir que uma pessoa seja presa, não se comprove sua responsabilidade penal e ao final se tenha por adequada a prisão que fora indevida”.

O raciocínio é simples: se condenado, o tempo encarcerado provisoriamente entra na contagem da pena do detento; logo, se absolvido, como deve ficar o tempo em que ficou preso? Mesmo que a referida decisão se atenha aos proventos do trabalho perdido e não ao grande problema social que uma prisão impõe ao preso, condenado ou não, ainda assim, ela coloca em discussão no Judiciário o problema da superlotação, da precariedade das estruturas de encarceramento, das prisões provisórias e da demora nos julgamentos. Talvez, esse seja o caminho para a justiça social que este país clama.

Para ler mais sobre esse e outros assuntos, confira nosso blog.

Mariane Reis Cruz - Advogada Sênior e Sócia Fundadora

Mariane Reis Cruz

Advogada sênior sócia fundadora

É mestra e bacharela em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com formação complementar em Direito e Políticas Públicas pela Université de Lille, na França, e Humanidades pela Universidad de la República, no Uruguai. É também bacharela em Letras pela UFMG.