Valente Reis Pessali Advocacia e Consultoria

Vitória para as pessoas trans e deficientes!

Em abril deste ano noticiamos que conseguimos uma liminar em Mandado de Segurança que garantiu a matrícula de Pitty Negreiros Picardi no curso de Ciências Biológicas na Universidade Federal de Minas Gerais. Pitty é mulher trans, indígena, com deficiência mental leve e que sofre de transtornos mentais em decorrência de anos de exclusão e preconceito.

Após abandonar os estudos em decorrência de um sistema educacional que não está apto para lidar com as diversidades, ela foi convidada a voltar a estudar na ONG TRANSVEST, cujo propósito é garantir oportunidades de estudo para travestis e transexuais em um ambiente de respeito e valorização das diversidades. Assim, ela fez o ENEM 2017 e garantiu vaga na Universidade pelo SISU na modalidade de vaga para candidatos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas, com deficiência, com renda familiar bruta mensal per capita igual ou inferior a 1 salário mínimo e meio.

Ocorre que, no ato da matrícula, a UFMG indeferiu seu registro alegando que não teria sido comprovada por meio de documentos a “condição de pessoa com deficiência nos termos do art. 4º do Decreto nº 3298/99”. Em sede de recurso administrativo a UFMG emitiu parecer que dizia que para ser caracterizada como “deficiente mental” como requisito para acessar a reserva de vagas, Pitty deveria ter desempenho intelectual equivalente ao de uma criança de 6 até 9 anos de idade.  A justificativa da UFMG era totalmente incompatível com o que propõe o Estatuto da Deficiência, Lei 13.146/2015, cuja finalidade é a inclusão e reconhecimento das diferenças num ambiente diverso e plural.

Do direito à educação e da função das cotas para ingresso nas Universidades

O direito à educação está contemplado no art. 6º de nossa Constituição, sendo direito social. O art. 22, XXIV garante à União o dever de legislar privativamente acerca das diretrizes de base da educação nacional. O Art. 205, por sua vez, determina que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família e será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

O sistema de cotas surgiu no contexto do desenvolvimento das diretrizes de base da educação, e em nosso país nasceram a partir da ideia de solidariedade social, pelo aspecto da realização da igualdade material e redução das desigualdades. A ideia apregoada pelas cotas vai ao encontro dos interesses sociais do Estado, em busca da redução da desigualdades e da promoção dos direitos das classes menos favorecidas ou fragilizadas, seja pelo critério étnico, seja pelo critério social de condição financeira, origem escolar ou deficiência.

Da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência

A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência é o primeiro documento internacional de direitos humanos que adquiriu status de norma constitucional na República Federativa do Brasil, uma vez que, nos termos do artigo 1º do Decreto nº. 6.949/2009, foi aprovada como Convenção Internacional de Proteção aos Direitos Humanos nos moldes do § 2º do artigo 5º da Constituição Federal. Pode-se afirmar, inclusive, que se trata do primeiro e único documento internacional de direitos humanos com caráter de Emenda Constitucional no Brasil, conforme estabelece o artigo 5º, parágrafo 3º, da Constituição Federal.

A Lei 13146/2015, estabelece em seu art. 1º:

Art. 1º  É instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania.

O art. 2º, define o conceito de deficiência:

Art. 2º  Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

No caso de Pitty, sua deficiência intelectual de natureza leve, somada às barreiras da esquizofrenia, subsumem perfeitamente seu caso à lógica estabelecida pelas normas supramencioandas. Tanto é assim, que sua trajetória de vida evidencia processos altamente violentos de exclusão, abandono escolar e privação de direitos.

Da Decisão final

Ao final do processo a decisão liminar foi mantida e garantiu-se definitivamente o direito à educação e acesso à Universidade por Pitty.

A sentença reconhece o  longo histórico de deficiência intelectual e esquizofrenia de Pitty e o prejuízo cognitivo daí advindo, como déficits na atenção e memória de trabalho, com reflexos nas suas atividades diárias e padrão de relacionamentos interpessoais. Portanto, reconheceu que Pitty preenchia os requisitos editalícios, devendo-se garantir seu ingresso na Universidade, pelo sistema de cotas, no curso por ela optado, face sua aprovação.

Ainda, a sentença afirmou:

“O princípio maior da dignidade da pessoa humana, consagrado na Constituição como fundamento republicano/democrático, assegura a todos uma existência digna e com justiça social, sempre com respeito às qualidades particulares de cada indivíduo.

Na extensão da garantia aos direitos do ser humano, e aí fica mais claro ainda que os fundamentos utilizados para indeferir a matrícula da impetrante não podem prosperar, porquanto lastreados em legislação desatualizada, foi promulgada a Lei de Inclusão da Pessoa com Deficiência – Lei 13.146/15, que traz um conceito bem mais amplo do termo deficiência”.

A garantia dos direitos de Pitty nos enche de esperanças! A Valente Reis Pessali é agradecida por fazer parte dessa conquista.

Mariane Reis Cruz - Advogada Sênior e Sócia Fundadora

Mariane Reis Cruz

Advogada sênior sócia fundadora

É mestra e bacharela em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com formação complementar em Direito e Políticas Públicas pela Université de Lille, na França, e Humanidades pela Universidad de la República, no Uruguai. É também bacharela em Letras pela UFMG.