Desde a fundação de nosso escritório vimos discorrendo longamente sobre as complexidades inerentes aos casos que envolvem violência contra a mulher. A experiência empírica de trabalho quotidiano com essas mulheres mostra a dura realidade vivida por cada uma delas e a forma como suas subjetividades são construídas, destruídas e reconstruídas durante o processo de enfrentamento à violência, sua superação e a reconstrução de novos caminhos possíveis.
Inúmeras questões atinentes ao tema foram abordados por nós no transcorrer dos últimos anos. Tratamos:
- Do Projeto de Lei nº 5.069/2013, que pretende modificar a maneira como o estupro é tratado no país;
- Do problema do assédio no carnaval e outras festas de rua;
- Da luta histórica das mulheres por seus direitos de cidadania;
- Das complexidades envolvendo os casos de violência de gênero;
- Dos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres;
- Novamente do dia internacional da mulher;
- De casos de violência de gênero envolvendo celebridades;
- Do indiciamento do cantor Vitor, da dupla Vitor e Leo, por vias de fato contra sua companheira;
- Sobre o que querem as vítimas de violência de gênero;
- Sobre a retirada compulsória de bebês de mães vulnerabilizadas pela sociedade;
Não por acaso estes foram os temas escolhidos. Assim foi em decorrência da demanda, da necessidade urgente de se abordar o tema, desmistificar, fortalecer a luta pela igualdade e pelo respeito.
Agora é preciso falar da violência patrimonial. Ela raramente vem sozinha e é quase sempre negligenciada, principalmente pelos operadores do direito e fortemente por juízes e promotores. A verdade é que sequer as próprias vítimas reconhecem facilmente que continuam sendo vítimas de violência, mas agora de ordem patrimonial.
Geralmente, os casos surgem a partir de instâncias mais imediatas: violência física, tortura psicológica atrelada a posturas possessivas, intimidatórias e de manipulação. Ambas mais facilmente identificáveis e englobadas na perspectiva da violência moral e psicológica especificadas pela própria lei Maria da Penha. Estes casos de violência geralmente são combatidos a partir do rompimento imediato da relação da vítima com o agressor – a saída de casa, a proibição de contato, ambas possíveis por meio de Medidas de Proteção.
Entretanto, é em um segundo momento em que a violência patrimonial passa a ser amplamente utilizada pelo agressor – não que isso já não ocorresse anteriormente em parte dos casos, mas torna-se mais evidente. A partir da separação, o agressor passa a se instrumentalizar de sua posição financeira para dificultar a vida da ex-companheira. Nos últimos anos vivenciamos casos nos quais:
- Todos os bens do casal encontravam-se exclusivamente em nome do agressor;
- O agressor abandonou o emprego formal para não ter que pagar alimentos aos filhos;
- O agressor atrasa todos os meses o pagamento da pensão com o único objetivo de obrigar o ajuizamento de sucessivas execuções;
- O agressor se esquiva propositalmente do oficial de justiça para não ter que contribuir para o sustento dos filhos comuns;
- O agressor manipula a legislação de maneira a garantir que todos os bens construídos na constância da união sejam de sua exclusiva propriedade;
- O agressor pressiona emocionalmente a vítima para que a divisão seja feita rapidamente, negligenciando seus direitos.
- O agressor desqualifica a contribuição da vítima na construção do patrimônio comum, desconsiderando a dupla jornada da mulher em sua rotina de trabalho somada aos cuidados do lar e dos filhos.
Estes são alguns exemplos que colocam a vítima, já extremamente fragilizada, em um processo de vulnerabilidade econômica que aprofunda suas dores. Em muitos casos, a vítima fica tão fragilizada e desorientada que sequer consegue decidir com certa dose de razoabilidade como lidar com a divisão dos bens, abrindo mão de muitas coisas que lhe seriam de direito. O papel do advogado, neste caso, é ter sensibilidade para alertá-la dos riscos e consequências de cada uma das decisões em curto, médio e longo prazo. Ademais, é preciso criar uma blindagem entre a vítima e o agressor, atuando como mediador e evitando o contato direto nos casos mais graves. A mediação institucional e as audiências de conciliação são bons ambientes para promover o diálogo de maneira a romper o ciclo de violência.
Assim mesmo, esta tarefa não é fácil. Muitas vezes, a vítima encontra-se tão sensível que mesmo as orientações dos advogados passam a não ser ouvidas. É preciso ter paciência e compreender a complexidade da situação vivida. O importante é não deixar que o atropelo e a pressa promovam consequências negativas para o futuro dessas mulheres.
Por fim, ainda muito incipiente a atuação da justiça especializada em violência doméstica no que tange à concessão de alimentos provisórios à mulher vítima de violência doméstica – algo previsto expressamente na lei Maria da Penha. Mesmo em casos gravíssimos, como um no qual o ex-companheiro assassinou o namorado de nossa cliente, que foi obrigada a permanecer fugida durante mais de 1 ano, o juiz da Vara Maria da Penha e tampouco o da Vara de Família se sensibilizaram para garantir-lhe meios de sustento fora de sua rede de relações sociais. Ainda temos um longo caminho pela frente. A luta não para.