Sobre a violência patrimonial e a Lei Maria da Penha
Por Gustavo Pessali
Desde a fundação de nosso escritório vimos discorrendo longamente sobre as complexidades inerentes aos casos que envolvem violência contra a mulher. A experiência empírica de trabalho quotidiano com essas mulheres mostra a dura realidade vivida por cada uma delas e a forma como suas subjetividades são construídas, destruídas e reconstruídas durante o processo de enfrentamento à violência, sua superação e a reconstrução de novos caminhos possíveis.
Inúmeras questões atinentes ao tema foram abordados por nós no transcorrer dos últimos anos. Tratamos:
- Do Projeto de Lei nº 5.069/2013, que pretende modificar a maneira como o estupro é tratado no país (https://valentereispessali.com.br/home/2016/01/05/na-contramao-dos-direitos-da-mulher-o-pl-5069-e-a-realidade-brasileira/);
- Do problema do assédio nas festas de rua (https://valentereispessali.com.br/home/2016/02/04/carnavalsemassedio/);
- Da luta histórica das mulheres por seus direitos de cidadania (https://valentereispessali.com.br/home/2016/03/);
- Das complexidades envolvendo os casos de violênia de gênero (https://valentereispessali.com.br/home/2016/08/17/violencia-contra-a-mulher-e-sua-complexidade-multifacetadaviolencia-contra-a-mulher-e-sua-complexidade-multifacetada-por-gustavo-pessali-o-valente-reis-pessali-surgiu-da-proposta-de-oferecer-um-trab/)
- Dos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres: (https://valentereispessali.com.br/home/2016/12/)
- Novamente do dia internacional da mulher (https://valentereispessali.com.br/home/2017/03/08/dia-08-contra-a-violencia/);
- De casos de violência de gênero envolvendo celebridades (https://valentereispessali.com.br/home/2017/04/14/basta-machistasnaopassarao/);
- Do indiciamento do cantor Vitor, da dupla Vitor e Leo, por vias de fato contra sua companheira (https://valentereispessali.com.br/home/2017/04/05/cantor-victor-e-indiciado-por-vias-de-fato-entenda-o-caso/);
- Sobre o que querem as vítimas de violência de gênero: (https://valentereispessali.com.br/home/2017/05/12/o-que-querem-as-vitimas-de-violencia-de-genero/)
- Sobre a retirada compulsória de bebês de mães vulnerabilizadas pela sociedade (https://valentereispessali.com.br/home/2017/06/);
Não por acaso estes foram os temas escolhidos. Assim foi em decorrência da demanda, da necessidade urgente de se abordar o tema, desmistificar, fortalecer a luta pela igualdade e pelo respeito.
Agora é preciso falar da violência patrimonial. Ela raramente vem sozinha e é quase sempre negligenciada, principalmente pelos operadores do direito e fortemente por juízes e promotores. A verdade é que sequer as próprias vítimas reconhecem facilmente que continuam sendo vítimas de violência, mas agora de ordem patrimonial.
Geralmente, os casos surgem a partir de instâncias mais imediatas: violência física, tortura psicológica atrelada a posturas possessivas, intimidatórias e de manipulação. Ambas mais facilmente identificáveis e englobadas na perspectiva da violência moral e psicológica especificadas pela própria lei Maria da Penha. Estes casos de violência geralmente são combatidos a partir do rompimento imediato da relação da vítima com o agressor – a saída de casa, a proibição de contato, ambas possíveis por meio de Medidas de Proteção.
Entretanto, é em um segundo momento em que a violência patrimonial passa a ser amplamente utilizada pelo agressor – não que isso já não ocorresse anteriormente em parte dos casos, mas torna-se mais evidente. A partir da separação, o agressor passa a se instrumentalizar de sua posição financeira para dificultar a vida da ex-companheira. Nos últimos anos vivenciamos casos nos quais:
- Todos os bens do casal encontravam-se exclusivamente em nome do agressor;
- O agressor abandonou o emprego formal para não ter que pagar alimentos aos filhos;
- O agressor atrasa todos os meses o pagamento da pensão com o único objetivo de obrigar o ajuizamento de sucessivas execuções;
- O agressor se esquiva propositalmente do oficial de justiça para não ter que contribuir para o sustento dos filhos comuns;
- O agressor manipula a legislação de maneira a garantir que todos os bens construídos na constância da união sejam de sua exclusiva propriedade;
- O agressor pressiona emocionalmente a vítima para que a divisão seja feita rapidamente, negligenciando seus direitos.
- O agressor desqualifica a contribuição da vítima na construção do patrimônio comum, desconsiderando a dupla jornada da mulher em sua rotina de trabalho somada aos cuidados do lar e dos filhos.
Estes são alguns exemplos que colocam a vítima, já extremamente fragilizada, em um processo de vulnerabilidade econômica que aprofunda suas dores. Em muitos casos, a vítima fica tão fragilizada e desorientada que sequer consegue decidir com certa dose de razoabilidade como lidar com a divisão dos bens, abrindo mão de muitas coisas que lhe seriam de direito. O papel do advogado, neste caso, é ter sensibilidade para alertá-la dos riscos e consequências de cada uma das decisões em curto, médio e longo prazo. Ademais, é preciso criar uma blindagem entre a vítima e o agressor, atuando como mediador e evitando o contato direto nos casos mais graves. A mediação institucional e as audiências de conciliação são bons ambientes para promover o diálogo de maneira a romper o ciclo de violência.
Assim mesmo, esta tarefa não é fácil. Muitas vezes, a vítima encontra-se tão sensível que mesmo as orientações dos advogados passam a não ser ouvidas. É preciso ter paciência e compreender a complexidade da situação vivida. O importante é não deixar que o atropelo e a pressa promovam consequências negativas para o futuro dessas mulheres.
Por fim, ainda muito incipiente a atuação da justiça especializada em violência doméstica no que tange à concessão de alimentos provisórios à mulher vítima de violência doméstica – algo previsto expressamente na lei Maria da Penha. Mesmo em casos gravíssimos, como um no qual o ex-companheiro assassinou o namorado de nossa cliente, que foi obrigada a permanecer fugida durante mais de 1 ano, o juiz da Vara Maria da Penha e tampouco o da Vara de Família se sensibilizaram para garantir-lhe meios de sustento fora de sua rede de relações sociais. Ainda temos um longo caminho pela frente. A luta não para.