Valente Reis Pessali Advocacia e Consultoria

Lei de Cotas: recentes mudanças para garantir o acesso à educação

Ainda que a Lei de Cotas seja do ano de 2012, muito se discute sobre a sua regulamentação e quem são os sujeitos aos quais se destina essa ação afirmativa, que visa garantir o direito à educação a todas, todos e todxs. Como um direito social garantido pela Constituição, o direito à educação é direito de todos e dever do Estado e da família e será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Portanto, cabe ao Estado garantir que todos tenham acesso às instituições de ensino e à União legislar sobre a política nacional de educação.

Recentemente nosso escritório lidou com a judicialização e implementação da Lei em casos que envolvem estudantes que vieram da escola pública e de pessoas com deficiência, todos com sucesso.

A questão racial e como identificar o sujeito da ação afirmativa

Nesse sentido, a Lei 12.711/12, Lei de Cotas, estabelece em seu art. 3º que:

Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1o desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção no mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

No que tange às cotas de caráter racial, necessário diferenciar os conceitos de heteroidentificação e de autoidentificação, o primeiro sendo a identificação (avaliação) do sujeito feita por um outro, e o segundo, a identificação do sujeito por ele mesmo. A heteroidentificação faz parte do processo de acompanhamento e avaliação da política de ações afirmativas, atuando em dependência à autodeclaração do candidato ou candidata.

O procedimento complementar, além de evitar fraudes, é comum a todas as políticas públicas de cotas. A título exemplificativo, no caso das cotas para pessoas com deficiência, hipossuficientes e que tenham estudado em escolas públicas, primeiro há uma autodeclaração e depois uma complementação do procedimento, que é a verificação de documentos. Assim deve ocorrer com todos.

Nesse sentido, o Ministro do Supremo Tribunal Federal – STF, Ricardo Lewandowski, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 186, sobre a constitucionalidade da Lei de Cotas, afirmou:

Tanto a autoidentificação, quanto a heteroidentificação, ou ambos os sistemas de seleção combinados, desde que observem, o tanto quanto possível, os critérios acima explicitados e jamais deixem de respeitar a dignidade pessoal dos candidatos, são, a meu ver, plenamente aceitáveis do ponto de vista constitucional.

Os critérios aludidos pelo Ministro são:

  • (a) a classificação pelo comitê deve ser feita posteriormente à autoidentificação do candidato como negro (preto ou pardo), para se coibir a predominância de uma classificação por terceiros;
  • (b) o julgamento deve ser realizado por fenótipo e não por ascendência;
  • (c) o grupo de candidatos a concorrer por vagas separadas deve ser composto por todos os que se tiverem classificado por uma banca também (por foto ou entrevista) como pardos ou pretos, nas combinações: pardo-pardo, pardo-preto ou preto-preto;
  • (d) o comitê deve ser composto tomando-se em consideração a diversidade de raça, de classe econômica, de orientação sexual e de gênero e deve ter mandatos curtos.

Mais especificamente, a Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, depois de escândalos de supostas fraudes no sistema de cotas, regulamentou a forma de ingresso na Universidade, determinando que o aluno que se autodeclarasse negro, pardo ou indígena, além de documentação, deveria também justificar a sua resposta a partir de 2018 numa carta consubstanciada. Em 2019, depois de selecionados pelo Sisu, e ao fazer o registro acadêmico, diversos estudantes que se autodeclararam negros tiveram as matrículas na instituição indeferidas.

O ingresso na Universidade e o mito da democracia racial

De acordo com o Professor Rodrigo Ednilson, que há 20 anos trabalha com ações afirmativas na UFMG e da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis,

A carta consubstanciada é uma ferramenta importante no acompanhamento da efetividade da Política de Ações Afirmativas, para inclusão de pessoas negras (pretos ou pardos) e indígenas… não se descarta a autodeclaração, que continua a vigorar como princípio importante do reconhecimento da identidade dos sujeitos, mas a carta aumenta os custos de uma autodeclaração falsa.

Esse tema passa pela discussão de imagem de nação que pretendemos constituir na nossa sociedade. A suposta pacificação acerca da miscigenação e diversidade racial que vivemos no Brasil, que muito se deve aos “pensadores do Brasil” como Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, criaram parte dp imaginário sobre quem nós somos e contribuíram para a disseminação do mito da democracia racial, fundante da sociedade brasileira. Mito porque é falsa, uma vez que as diferenças entre negros e brancos no país é flagrante, no salário, no encarceramento, nas mortes precoces, nas Universidades.

Em palestra proferida no dia 03 de abril de 2019 na Faculdade de Educação da UFMG, o mesmo Rodrigo Ednilson questionou a construção dessa imagem e propôs uma leitura aprofundada da miscigenação e do lugar do negro no Brasil para pensar a nossa nacionalidade. Pela democratização da educação e para garantir o acesso à Universidade àqueles sujeitos das ações afirmativas, ele a UFMG propuseram a mudança supramencionada  no ato do registro acadêmico, a carta consubstanciada.

E os casos já consolidados?

Desde a Lei de Cotas, em 2012 até 2018, sem a adequada regulamentação, a UFMG (e outras Universidades) não havia instituído um comitê de heteroidentificação dos candidatos, candidatas e candidatxs, aceitando apenas a autoclassificação como critério para utilização do benefício das cotas para ingresso ao ensino superior. Sendo assim, muitos estudantes que supostamente não se enquadrariam na política de cotas acabaram tendo sua matrícula deferida e hoje completam os quadros de discentes das Universidades públicas.

Acontece que atualmente uma série de medidas foram tomadas pela UFMG para coibir essas supostas fraudes, como a própria instituição da heteroidentificação no ato da matrícula. Outra medida é a instauração de sindicâncias e processos administrativos disciplinares para tratar dos casos dos alunos, alunas e alunxs já matriculados e regulares na instituição. Nesses casos, a UFMG, como autarquia federal, esbarra nos princípios da Administração Pública, como razoabilidade e proporcionalidade, uma vez que fere o direito adquirido desses alunos.

A UFMG se esquivou de regulamentar a Lei de Cotas por anos e não pode, agora, quando muitos dos alunos já se formaram ou estão em fase final de curso, querer mudar a sua situação jurídica. Soma-se a isso o fato de que a própria instituição teve gastos com esses estudantes e que as vagas não serão preenchidas, restando obsoletas. A Universidade também falhou ao cumprir seu papel no acompanhamento e avaliação da política pública. Por fim, nos casos já consolidados, em que o ingresso e a permanência desses estudantes foram deferidos pela instituição, não há que se falar em suposta fraude às cotas ou até mesmo em processos administrativos, tais casos se sustentam e ferem os princípios constitucionais de razoabilidade, proporcionalidade, direito adquirido e segurança jurídica.

Os procedimentos adotados pelas Universidades são administrativos e regidos por lei, o que permite a elaboração de recursos e discussão do tema em sede administrativa. Se você tem dúvidas sobre os procedimentos administrativos ou precisa de representação em casos contra a Administração Pública, a Valente Reis Pessali pode te ajudar.

Mariane Reis Cruz - Advogada Sênior e Sócia Fundadora

Mariane Reis Cruz

Advogada sênior sócia fundadora

É mestra e bacharela em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com formação complementar em Direito e Políticas Públicas pela Université de Lille, na França, e Humanidades pela Universidad de la República, no Uruguai. É também bacharela em Letras pela UFMG.