Linchamento virtual é uma saída? Reflexões sobre racismo, cotas raciais e democracia
Por Gustavo Pessali
A crise política, social e sanitária tem chegado a situações alarmantes em nosso país. A este cenário, soma-se o abandono da Saúde, há 15 dias sem ministro designado; os ataques à Educação, Cultura e ao Meio Ambiente; o aprofundamento do discurso fascista por parte do presidente e de seus apoiadores; a falta de políticas que garantam condições para a população atravessar a pandemia; e a crescente onda de violência policial contra a população negra e periférica. O caos intencionalmente criado em plena pandemia consolida um cenário de medo e ódio ideal para uma nova ruptura democrática no Brasil.
Nesse contexto, têm ocorrido inúmeras manifestações presenciais em defesa da democracia em diversas cidades, e novos atos estão sendo convocados. Ao mesmo tempo, um levante popular de grandes proporções tomou as maiores cidades dos Estados Unidos tendo como estopim o assassinato de George Floyd. Nos dois países, as populações mais afetadas pela violência do Estado, intensificada pela necropolítica de seus governantes, são a negra e a indígena. Por isso, o enfrentamento ao racismo é também uma das pautas fundamentais dos atos antifascistas brasileiros, que vêm se intensificando.
A luta antirracista nas instituições
Ocorre que esses fatos não são isolados de outros tantos atrelados à luta antirracista em diversos espaços, dentre eles as instituições públicas e, dentro delas, as universidades públicas. A política de cotas para acesso ao ensino superior público e gratuito foi um grande passo na busca por uma reparação histórica destinada à população negra brasileira. Ocorre que, como toda política, sua implementação depende de um processo de regulamentação e, também, de educação popular.
O caso da UFMG: desafios e aprimoramentos para melhor implementação da política de cotas
A Universidade Federal de Minas Gerais primeiro implementou a destinação de parte de suas cotas para negros e pardos dentro da lógica da autoidentificação racial. Ocorre que, posteriormente, evidenciou-se que isto não estava sendo suficiente para cumprimento dos objetivos a que se destinavam as cotas: enegrecimento das universidades públicas! Um segundo passo, já em 2018, foi determinar àqueles candidatos que optassem pela modalidade de raça/cor no sistema de reserva de vagas realizassem a redação de uma carta consubstanciada de próprio punho com justificativas para tal declaração. Como se pode imaginar, muitas pessoas passaram a descrever os processos de miscigenação racial de suas famílias, bem como a presença daquele avô ou avó negra como legitimadores de sua opção de modalidade de concorrência.
O uso equivocado das cotas raciais por pessoas não negras decorre, dentre outros aspectos, do desdobramento da discussão acerca dos critérios adotados na implementação da política, já que não é evidente para todas as pessoas que o critério adotado seja o fenotípico, independentemente de aspectos culturais/identitários e, mesmo dentro do critério fenotípico, sabemos que as identidades são relacionais. Isso quer dizer que uma pessoa considerada negra/parda em Florianópolis, no sul do Brasil, não necessariamente será socialmente lida da mesma forma em Salvador, na Bahia. Não são, portanto, aspectos de uma objetividade incontestável.
Na busca por melhorar as condições de seleção e ocupação das vagas por pessoas negras e pardas, a UFMG implementou no vestibular de 2019 a Comissão Complementar à Autodeclaração, responsável por realizar o procedimento de heteroidentificação, verificando a condição étnico-racial do candidato selecionado. Sendo assim, para além da autoidentificação, passou a existir ainda uma identificação externa, realizada por pessoas negras, que passam a avaliar a negritude das pessoas que haviam se autoidentificado, validando-as ou não.
Linchamento virtual: essa prática ajuda a solucionar o problema?
Ocorre que durante o período de transição da lógica de autoidentificação para a heteroidentificação, vários casos ficaram em um limbo entre a autoidentificação compreendendo aí aspectos que também são identitários/culturais, para além dos fenotípicos, e aqueles casos que efetivamente constituem fraude – quando houve deliberada intenção de se beneficiar de um direito que não cabia ao candidato. Vários casos duvidosos vêm sendo expostos por meio de mídias sociais, o que tem provocado linchamentos públicos, com pessoas sendo alvo de vários insultos, difamações, exposições de sua intimidade e até mesmo ameaças.
Garantias do Estado Democrático de Direito e soluções cabíveis
Os atos de linchamento público utilizados por movimentos diversos como uma forma de justiçamento, correm o risco de, ao contrário de sua intenção inicial, promoverem a injustiça. Isto porque ignoram diversas garantias constitucionais, como a presunção de inocência e o devido processo legal e administrativo, imprescindíveis para a responsabilização de quem realmente tiver fraudado as cotas raciais. Para além disso, no tribunal da internet, não há limites para onde tais casos podem chegar, atingindo o ponto de serem cometidos crimes pelas pessoas que estão, na verdade, lutando por direitos: crimes como injúria, difamação, calúnia e ameaça. As pessoas expostas podem, inclusive, entrar com ações judiciais buscando a responsabilização de quem eventualmente tiver cometido tais crimes, o que pode ocorrer tanto no âmbito cível (indenização), quanto criminal (responsabilização).
Qual o melhor caminho a seguir?
O melhor caminho a seguir no caso de que haja suspeita de que alguém tenha fraudado as cotas raciais é realizar denúncias junto à corregedoria das universidades, bem como junto ao Ministério Público Federal, para que apure os casos, garantindo o contraditório e a ampla defesa, e promova as responsabilizações cabíveis.
A UFMG, por exemplo, instaurou sindicância para apuração de várias denúncias atreladas ao acesso a suas vagas por meio do sistema de cotas. Cabe salientar que os processos administrativos devem realizar seus procedimentos dentro de um prazo razoável e, quando houver demora excessiva, é possível pressionar a universidade para que encaminhe o caso com celeridade.
Direito de defesa dos acusados
Aos acusados, é preciso saber que aspectos identitários são complexos e que é preciso compreender a seriedade da política de cotas, mas também que cada caso é um caso e assim devem ser tratados. A Administração Pública é balizada pelos princípios da legalidade, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, impessoalidade e tantos outros princípios que devem ser sopesados no momento de serem tomadas decisões, como a primazia do interesse público, a economicidade e a eficiência. Por esse motivo:
- Ter acessado a universidade no momento de transição dos requisitos de acesso à política; e
- Estar em momento final do curso;
São exemplos de razões pelas quais o jubilamento não necessariamente é a melhor solução.
Como se percebe, o tema é complexo e vários elementos devem ser levados em consideração. O mais importante deles, no entanto, é não deixarmos que o medo e o ódio virem modus operandi na luta por direitos. É importante o fortalecimento e reforço das instituições democráticas ao invés de promovermos sua invalidação e deslegitimação. Em caso de dúvidas, não deixe de entrar em contato com nosso escritório. Podemos ajudar!